quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Meus olhos não enxergam se eu não usar minha memória.



Um homem aparentando quarenta anos, deficiente visual, vem descendo a Rua Duque de Caxias no centro de Porto Alegre, com sua bengala de alumínio que serve para guiar-lhe o caminho. Passa em frente a uma escola e com sua bengala-guia bate nos ferros do portão da escola. O som que a bengala de alumínio faz ao tocar no ferro do portão lhe agrada, e o cego continua a bater nas grades, iniciando um som ritmado. O som que produz lembra-lhe um sino e ele sorri encantado com a brincadeira. Entretanto, o barulho chama atenção de um homem que está junto ao portão, que, então, exclama:

- Porque estás batendo assim com tua bengala nos ferros? Aqui é uma escola e os alunos estão em aula, o barulho que você está fazendo pode atrapalhá-los! O senhor precisa de ajuda?

O cego, ainda sorrindo, responde ao homem:

- Opa! obrigado por não gritar, às vezes acham que um cego também é surdo. Desculpe senhor, fiquei tão animado com o som que nem pensei que isso pudesse incomodar. Aqui é uma escola, é?

E, o homem cego, levantando a bengala começa a explorar as grades do portão.
-Esses ferros são altos, não é mesmo?

O homem lhe responde balançando a cabeça em sinal de afirmação e emite um som.
- hum,hum!

O cego então pergunta ao homem à sua frente:
- Quem é o senhor, o que faz nessa escola?

O homem lhe responde:
-Trabalho nessa escola, sou porteiro daqui.

O cego com uma das mãos tateia as grades do portão e descobre que os ferros são grossos e ásperos.
- Essas grades são antigas.

O porteiro olhando com desconfiança para o cego lhe responde:
-Sim, o portão é bem antigo. Mas como você sabe? Você consegue enxergá-lo?

O cego responde:
- Não! Não enxergo. Não com os olhos que você vê. Sou cego de nascença mas aprendi a enxergar com outros olhos. Percebi que esse portão é antigo, pela espessura e pela ação do tempo no ferros que o deixaram ásperos por causa da ferrugem. Observe bem.

O cego chama o porteiro para olhar mais de perto as barras de ferro do portão. Procura a mão do porteiro para colocá-la sobre uma barra de ferro.
- Estás vendo aqui? Tem um desgaste, outras partes com ranhuras, mas não aparecem, não é? Foram pintadas! Aliás acho mesmo que esse portão foi pintado inúmeras vezes. De que cor é esse portão?

O porteiro olha para o cego e surpreso responde:
- Preto.

O cego aproxima o nariz de uma das barras de ferro e diz:
- Ah sim! Tem um cheiro característico de tinta antiferrugem.

O cego se dirige ao porteiro, sorrindo, e rapidamente lhe estende a mão:
- Desculpe, esqueci de me apresentar, sou Miguel, mas pode me chamar de Miga, todos me conhecem como cego Miga. Qual é sua graça?

O porteiro leva um susto mas cumprimenta o cego Miga:
- Me chamo Ângelo.

O cego tateia o chão com a bengala-guia e encontra um degrau, sobe esse degrau e diz:
- Muito interessante, nós dois temos nomes de anjos, e o melhor, se juntarmos nossos nomes forma o nome Miguel Ângelo! o nome de um grande artista, o senhor conhece "Miguel Ângelo"?

O porteiro, ainda olhava com desconfiança aquele homem a sua frente, um estranho que chegou de surpresa e foi entrando na escola com uma conversa esquisita, e que agindo de forma espontânea, deixou-o atento à todos os seus movimentos. Voltou-se então para o cego Miga, respondendo:
- Sim, já ouvi falar sobre esse tal de Miguel Ângelo.

O cego Miguel continuou caminhando e falando:
- O senhor disse que é porteiro da escola. Mas que bela profissão uma pessoa pode ter! 

Aquele que guarda uma escola deve ser uma pessoa muito feliz. Seu nome significa "anjo guardião", sabia? E combina muito bem com o que o senhor faz aqui, o senhor é porteiro e guarda essa escola, é o "Ângelo Guardião"!

O porteiro tira sua boina azul e coça a cabeça pensativo:
" Porque será que ele falou isso? Ele não sabe que meu trabalho aqui é muito monótono. Vejo alunos, professores e funcionários da escola passarem a toda hora e todos os dias, alguns conversam ou me cumprimentam, e outros, nem me olham. Recebo as correspondências que chegam e repasso aos respectivos setores da escola, sou o primeiro a chegar e o último a sair. Todo os dias a mesma coisa. Essa vida de porteiro é um tanto sem graça, e esse cego não sabe de nada."

O cego vai seguindo reto pelo pátio da escola, e com a bengala descobre que o chão é feito de lajotas irregulares, então abaixa-se e com a mão tateia o chão:
- Hum! Lindas lajotas, encaixes perfeitos com duas cores, não é mesmo?

Ao mesmo tempo que pergunta ele mesmo responde:
- Ah! só podem ser pretas e brancas, se o portão é antigo, o chão da escola também é antigo, e todas as lajotas antigas com formatos geométricos são pretas e brancas. E arrisco afirmar que as lajotas maiores, quadradas, são brancas e as lajotas menores, em formato de losangos, são pretas.

O porteiro Ângelo não acredita, fica atônito ouvindo aquelas palavras e pensa:
"Como uma pessoa cega pode saber de tantas coisas assim? como ele entende de cores, de nomes, de profissões com tamanha certeza?" E, nessa confusão mental, diz ao cego Miguel:
- O senhor precisa de ajuda, está procurando algum endereço?

Miguel levanta-se e sorrindo dirige-se ao porteiro Ângelo.
- Por favor me chame somente de Miguel ou de cego Miga, sou muito novo ainda! 

Obrigado, não preciso de ajuda, também não estou procurando nenhum endereço.
Estava no Centro e resolvi descer esta rua para ver o pôr do sol. Mas pela hora ainda tenho tempo. Você poderia mostrar-me a escola e contar mais sobre ela? Gostaria de saber, deve ser uma escola com uma história interessante.

Ângelo fica surpreso com o que ouviu do cego e pergunta:
- Você disse que estava descendo para ver o por do sol? Fiquei curioso agora! Desculpe a indelicadeza, mas como é ver o pôr do sol sem conseguir enxergar como eu? Claro que posso mostrar-lhe a escola, mas primeiro responda-me: como você vê o pôr do sol?

O cego Miga ri e diz:
- Eu não vejo o pôr do sol, Ângelo!

E colocando a mão no peito continua a explicar:
- Eu sinto o pôr do sol! Quando o sol vai descendo do céu, sua luz muda de intensidade, então eu o sinto. Ele é lindo!

O porteiro sorri e diz:
- Sim, o pôr do sol é lindo mesmo!

O cego, empunhando a bengala-guia para cima, movimenta-a de um lado para outro, como se estivesse analisando a velocidade do vento e fica divagando:
- Essa escola tem prédios dos dois lados e na frente, ela é em formato de "U", não lembro de ter passado por aqui antes. Como é o nome dessa escola?

O porteiro, ainda surpreso responde:
- Interessante sua forma de ver as coisas Miguel! Sim, a escola tem o formato de "U". O prédio é antigo, ouvi falar que sua construção é em estilo neoclássico. O nome dessa escola é Escola Técnica Estadual Senador Ernesto Dornelles, e já foi internato de moças, onde as professoras eram todas freiras.

Miguel indo mais adiante, tateia o chão com sua bengala-guia, descobre um degrau e diz:
- Aonde vai dar esta escada?

O porteiro responde:
- É uma grande escadaria que vai dar na porta principal da escola.

Ângelo continua a falar sobre a escola.
- É uma escola normal como todas as outras, nesta escola estudam adolescentes que frequentam aulas do ensino médio e alguns fazem cursos técnicos. Tem uma placa acima da porta principal onde está escrito o nome da escola. O que mais queres saber sobre ela?

O cego Miga lhe retruca:
- Você disse que é uma escola normal? Como assim? Escolas sempre têm uma personalidade própria, uma história; escolas são templos do conhecimento. Não são
lugares normais, são lugares especiais! Quero saber tudo sobre ela. Estás disponível para mostrar-me a escola, Ângelo?

O porteiro coloca a boina azul na cabeça e fica convencido que talvez possa aprender muito com esse homem:
- Claro! Venha comigo.

Pega o cego pelo braço e o guia até uma das extremidades da escadaria, coloca uma das mãos do cego Miga aos pés de uma estátua e pergunta:
- Miguel você consegue perceber o que é isso?

O cego tateia com as mãos os pés da estátua e responde:
- Sim, é uma estátua, de pés pequenos e roliços, acho que é uma estátua de um menino, estou certo?

O porteiro, entusiasmado, responde:
- Sim!

O cego sobe mais um degrau da escada e vai tateando a estátua, descobre que nela tem um violão, contorna as pernas da estátua, sobe mais um degrau da escada e tateando chega as nádegas do menino, e com um sorriso exclama:
- Oh! É um menino nu, tinha quase certeza de que se tratava de um anjo.

Levanta seus braços para conseguir tatear o topo da estátua e tateia o restante do corpo da estátua, tateias as costas e descobre que ali não existem asas. Então, dirige-se ao porteiro Ângelo e diz:
- Não é propriamente um anjo, é um querubim! Querubins são meninos aspirantes a anjos e assim não possuem asas, este foi colocado no início da escadaria porque os querubins são considerados anjos vigilantes.

O porteiro Ângelo, com um sorriso, diz:
- Sim, me disseram que é um querubim, e na outra extremidade da escada tem um outro igualzinho a este. Eles empunham duas luminárias. Claro! agora faz sentido: as luminárias são instrumentos de vigília dos querubins, dão luz à escola e a protegem. Ah! Vivendo e aprendendo!

O cego sorri contente com a descoberta do porteiro.
Ângelo fica feliz com a nova descoberta e olha para a escola para ver qual seria a próxima coisa a mostrar. Aproxima-se do cego e diz:
-Lá em cima, depois que a escada acaba, existem duas colunas enormes, acho que possuem uns seis metros de altura, uma em cada extremidade da escadaria, e são muito bonitas, sabe? Nunca tinha visto como eram lindas!

Miguel se volta em direção ao porteiro e pergunta:
- Como é o capitel dessa coluna, Ângelo?

Ângelo, com uma expressão de dúvida, pergunta:
- Capitel? Não entendi!

O cego explica:
- Sim, o capitel da coluna é o topo. Como é o topo dessa coluna?

Ângelo anima-se:
- Ah! Sim, entendi; tem algumas decorações que parecem ser folhas e flores.

O cego levanta a cabeça em direção às colunas, parecia que conseguia enxergá-las e diz:
- Ah! Então é uma coluna coríntia, seu capitel é ornamentado com folhas de acanto. Muito interessante! tudo aqui foi pensado em sua construção, a escola você disse que foi um internato de moças, não é mesmo? Então: pois nada mais justo que dar significado, a isso, com essas duas colunas coríntias. As colunas coríntias representam a virgindade e a pureza!

O porteiro não entendia como um cego sabia tantas coisas, começou a desconfiar que aquele homem não era cego ou pelo menos não totalmente cego. Pensou em tirar os óculos escuros de Miguel. Primeiro sua desconfiança vinha de não entender como um cego sabia de tantas coisas e agora aquele cego olhava pra cima em direção as colunas como se as estivesse enxergando. Sempre soube que cegos não conheciam direito as direções. 
Então, num impulso, tirou os óculos do cego e disse:
- Deixe-me limpar seus óculos, Miguel; acho que respingou alguma coisa neles!

Miguel riu muito da façanha de Ângelo:
- Obrigado! Mas não faz diferença, eu não enxergo! Somente utilizo esses óculos para me safar da luz muito forte que por vezes me provoca dores de cabeça.

O porteiro Ângelo teve certeza que Miguel era cego, os olhos não tinham movimentos e nenhum brilho, muito comum em pessoas com deficiência visual. Mas conhecia poucos cegos, e por isso tinha preconceitos quanto ao seu modo de vida e suas atitudes. Foi então que perguntou ao cego:
- Como você sabe de tantas coisas?

Miguel, sempre com uma expressão de alegria, responde:
- Eu tive oportunidade de aprender, por sorte meus pais eram professores e tive uma boa educação. Na época em que fui alfabetizado haviam poucas pessoas preparadas para ensinar crianças com deficiência visual, os lugares que ensinavam as pessoas com deficiência eram; reformatórios e clinicas psiquiátricas. Em um tempo não muito distante achava-se que as pessoas que tinham alguma deficiência visual ou auditiva eram doentes. Eu nunca fui doente, somente nasci com deficiência visual congênita. Desde cedo fui estimulado a desenvolver outros sentidos e aprendi que todos os dias estou em um continuo processo de solução de problemas. Meus pais sabiam valorizar cada experiência que eu tinha. Como não enxergava, o meu sentido primeiro não foi o
tato e nem a audição e sim o olfato e o paladar. Somente depois de aprender a caminhar desenvolvi os sentidos do tato e da audição.

Ângelo escutava atentamente o que Miguel lhe contava e agora já desenvolvia simpatia e admiração pelo cego Miguel.
- Venha Miguel, vamos entrar na escola, tenho muitas coisas para lhe mostrar.

Subindo a escadaria rumo à porta principal da escola, o porteiro para de repente e exclama:
- Ah! ia esquecendo: Ali, acima da placa que tem o nome da escola, junto a parede de entrada, tem uns desenhos pintados em pedras muito pequenas.

O cego Miga sorri e pergunta ao porteiro:
- Como são esses desenhos?

O porteiro; olhando em direção da pintura, gesticulando, a descreve:
- São três figuras: do lado esquerdo tem uma mulher vestida de azul, apoiando um dos braços sobre um globo terrestre e com uma das mãos na testa como estivesse pensando e, do lado direito, outra mulher vestida de branco segura na mão esquerda o que parece ser um violão e na mão direita o que aparenta ser uma placa, e está olhando em direção a uma terceira figura, vestida de vermelho, que está ao centro Esta, certamente, é um anjo, pois possui grandes asas, e está voltada para o alto empunhando uma tocha.

O cego muito atento a explicação do porteiro, diz:
- Esses desenhos como você disse, é um mosaico, também chamado arte musiva, é um embutido de pequenas pedras pintadas. Que linda!

O porteiro não entende a exclamação do cego e pergunta:
- Realmente é muito linda essa pintura, mas como você sabe que ela é tão bela?

O cego responde:
- A minha expressão de "linda" não foi por causa da pintura em si, mas porque mais uma vez tudo se encaixa. Veja só, siga meu raciocínio Ângelo: A palavra "mosaico" tem origem na palavra alemã "mouseem", a mesma que deu origem à música, que significa musa. As três figuras que você me descreveu, representam a tríade do aspecto humano: o pensamento, a palavra e a ação. Aqui representado; pela ciência, que é o pensamento ou a razão; a música que é a palavra ou o som e as artes que é a expressão e a ação. A figura feminina que está de azul, debruçada sobre o globo e em uma situação pensativa, representa a ciência. A figura de branco, que supostamente tem ao lado uma lira e não um violão, esta representa a música; e também não propriamente a música mas o feminino. Música é uma palavra que vem do grego, "mousikê" significa musas, a música era a arte das musas, aquela cujo elemento básico era o som. Acredito que esta figura esteja segurando um papiro, e não uma placa, uma forma de divulgar a palavra. A terceira figura; o anjo, de vermelho, representa as artes; empunha uma tocha porque esta representa a luz do conhecimento e ilumina os grandes pensadores.
Estás vendo porque eu disse, lindo? Porque é realmente muito lindo! É maravilhoso fazer estas descobertas. Tudo aqui tem um propósito, nada foi colocado de forma aleatória, tudo tem um significado racional, uma ideia que junta-se a outra completando-se. Ver de verdade é entender o significado de cada coisa, isto é: olhar as coisas com outros olhos, ir um pouco mais além do que o olhos veem.

O porteiro, presta atenção às explicações do cego Miguel, fica à contemplar o mosaico em formato semicircular da fachada da escola, e tem em sua face uma expressão de surpresa e alegria.

Os dois dirigem-se à entrada da escola, onde duas portas grandes e pesadas estão abertas. O cego tateia a porta e percebe que estas portas possuem vidros, vidros em formatos diferentes. Pergunta ao porteiro:
- Esses vidros são todos translúcidos?

Ângelo comenta:
- Não, alguns são verdes, em todo entorno da porta existem vidros, é como um vitrô, alguns vidros são translúcidos outros são verdes.

Ângelo começa a contar os vidros verdes..
- São treze vidros verdes, em todo o vitrô. Ah! No meio, acima da porta, tem um vitrô em círculo. Hum! isto é muito bonito!

O porteiro Ângelo, fica admirado, nunca tinha prestado atenção aos detalhes da escola.

O cego Miguel e o porteiro Ângelo entram no hall da escola, onde encontram o professor Leonardo. Ângelo o cumprimenta:
- Boa tarde professor Leo! Esse é Miguel, ele está de passagem pela escola e resolveu conhecê-la, estou apresentando a escola para ele.

O porteiro, apresenta o professor ao cego Miguel, e diz a Miguel:
- Miguel esse é o professor Leonardo.

O professor, com uma expressão séria, olha para o porteiro de modo curioso e toca no braço de Miguel para cumprimenta-lo.
- Boa tarde Miguel, seja bem-vindo!

O cego procura a mão do professor.
- Boa tarde professor! prazer em conhecê-lo.

Miguel sorri e pergunta:
- O Senhor é professor de qual disciplina?

Leonardo sempre sério agora sorri repetindo o gesto do cego, como estivesse olhando-se num espelho, e responde:
- Sou professor de Matemática, mas no momento ocupo o posto administrativo, sou vice-diretor dessa escola.

O Cego dirige-se ao porteiro.
- Ângelo, por obsequio você conseguiria um copo d'água? Onde eu poderia me sentar um pouco?

O porteiro guia o cego até um banco de ferro, que fica junto à uma escadaria que leva ao andar superior. O professor que tudo observa, segue-os e senta-se ao lado de Miguel, enquanto o porteiro vai buscar o copo d'água. Miguel senta-se e tateia o banco, descobrindo seu formato. E rindo muito, fala ao professor.
- Mas que lindo banco de ferro! um móvel assim não deve existir mais nem em museu de tão antigo!

O professor acha o cego engraçado e ri muito com ele.
- Pois Miguel, nessa escola existem muitos objetos antigos, lá no porão existem máquinas e equipamentos que são raridades, mas estão desativados.

O cego então para de sorrir e com uma expressão assustada exclama:
- Um porão! com máquinas e equipamentos antigos? deve ser um lugar sinistro! Ih! Esse lugar deve ter fantasmas!

O professor, rindo muito, coloca a mão sobre o ombro de Miguel e o tranquiliza:
- Não! Fique tranquilo, não é um lugar sinistro; ali no porão fica o refeitório, algumas salas de aula, a sala de marcenaria, a sala de restauração e o laboratório de prótese. É um porão organizado, amplo, com grandes janelas, aliás todo o prédio possui grandes janelas. Mas, eu o entendo, lugares antigos sempre possuem lendas à respeito de fantasmas. Esta escola, também possui uma lenda de um fantasma; a lenda da "Menina cabeluda".

O cego, volta-se em direção ao professor, e surpreso diz:
- Que rico lugar, tem até uma lenda! Mas um porão com salas de estudo? Sempre penso que porões são lugares de depósito, com coisas que não são mais usadas. Mas diga-me professor: porque todas essas salas de trabalho? Isso é uma escola ou uma oficina?

O professor Leo responde:
- Sim, também existem lá coisas que não são mais utilizadas; são máquinas e equipamentos antigos, ficam expostas nos corredores, estão bem conservadas mas falta-lhe peças. A razão pela qual existem salas de trabalho, nesta escola, é que ela possui cursos técnicos: Design de interiores, Prótese dentária e Nutrição, que utilizam oficinas e laboratórios para estudos.

Ângelo chega com a água, coloca o copo nas mãos do cego:
- Aqui está seu copo d'água Miguel.

O porteiro pede licença:
- Com licença voltarei para o meu posto. Assim que terminarem a conversa, me chamem, estarei lá embaixo.

O Cego pega o copo d'água, bebe um pouco e com interesse pergunta ao professor:
- Mas diga-me professor, essa escola é inclusiva? Aqui possui professores capacitados para dar aula a alunos com alguma deficiência auditiva ou visual? Sempre quis fazer um curso técnico mas nunca tive oportunidade. Na época em que estudei, não tinha escolas inclusivas para alunos com necessidades especiais. Se pudesse, iria voltar a estudar. Nunca é tarde para aprender, não é mesmo?

O professor, um pouco confuso com a pergunta, baixa a cabeça desviando seu olhar do cego e meio sem jeito responde:
- Não sei se já tivemos alunos com necessidades especiais, enquanto estou nessa escola, não lembro de nenhum aluno nesse aspecto. Desconheço se algum professor aqui conhece a língua dos sinais, e não possuímos materiais em braille para deficientes visuais. Esta escola ainda não está estruturada para receber alunos com necessidades especiais, sinto muito, mas acredito que isso possa mudar e que esta escola possa vir a tornar-se inclusiva. Sobre sua indagação em voltar a estudar: se você tem esta vontade, concordo com você, nunca é tarde para voltar a estudar!

Miguel pensativo, amparando suas duas mãos sobre a bengala, lamenta:
- É lastimável, estamos no século XXI e existem poucas escolas inclusivas.

O professor Leonardo, olha para Miguel pensativo, nunca havia parado para pensar sobre este assunto, e concordando com o cego tem uma ideia:
- Você tem razão Miguel! Pensando bem, tenho uma boa notícia para lhe dar; se quiseres, poderás assistir uma aula técnica como ouvinte.

Miguel entusiasmado responde ao professor:
- Posso mesmo, professor? Ficaria muito feliz! Qual dia poderia vir e assistir uma das aulas?

Leonardo, sorrindo, lhe responde:
- Você pode vir o dia que quiser Miguel! Eu mesmo lhe levaria à uma das salas de aula, mas diga-me: qual curso você gostaria de assistir?

O cego pensa um pouco e responde:
- Bem, diante dos cursos que a escola oferece e levando em conta a minha deficiência, eu poderia escutar uma aula do curso de Nutrição. Sabe professor? conheço um pouco de culinária, aprendi a cozinhar. Já o curso de Prótese dentária, poderia ser ouvinte em uma aula sobre dentes ou anatomia bucal. No curso de Design de interiores, acredito que tenha aulas de história da arte; eu gosto muito e conheço acerca disso, poderia participar bastante. Todos os cursos são interessantes, aprender é sempre muito bom!

O professor, entusiasma-se com o interesse do cego, e combina seu retorno à escola:
- Façamos o seguinte Miguel! Você pode iniciar suas aulas como ouvinte, vindo nos dias em que houver os projetos de pesquisa; é o que chamamos de componentes curriculares, ainda em fase experimental. Funciona assim: os professores de várias
disciplinas são escolhidos para orientar os alunos, e escolhem junto com eles um tema
que será pesquisado; estes temas variam de acordo com o interesse do aluno e os professores procuram inserir o conteúdo desses temas em suas respectivas disciplinas.
Estas pesquisas são feitas para estimular o aprendizado e melhorar o desempenho dos alunos nas disciplinas, é um caminho que leva à interdisciplinaridade. Todos os sábados acontece na escola, conversas e debates, proporcionando aos alunos a apresentação dos resultados de suas pesquisas. Neste sábado, alguns representantes indígenas e associações de meio ambiente, virão à escola para debater questões sobre sustentabilidade, cultura dos povos indígenas e meio ambiente. Depois dos debates, os professores orientadores dos projetos, farão com os alunos atividades práticas. Você pode participar, se quiser, acho que você vai gostar!

Miguel escuta o professor com atenção e concorda:
- Muito bom! Sim, gostaria muito, sábado estarei aqui para participar como ouvinte e conhecer melhor a escola.

Neste momento toca a campainha da escola, avisando o término das aulas. O cego levanta-se e, junto com ele, o professor, e dirigem-se para a porta de entrada da escola, e despedem-se:
- Professor Leo, já tomei bastante seu tempo. Muito obrigada, pela conversa e pelo convite para assistir as aulas, voltarei com toda certeza!

O professor acompanha Miguel até a porta e chama o porteiro Ângelo, que sobe a escadaria rapidamente e guia o cego na descida. Enquanto estão descendo a escadaria, vários alunos passam pelos dois, e o porteiro lhe comunica:
- É hora da saída dos alunos da escola.

Miguel e Ângelo, chegam até o portão da escola:
- Então, Miguel, você gostou da escola?

O cego, apertando a mão do porteiro, responde sorrindo:
- Gostei muito! Voltarei no sábado, o professor convidou-me a participar como ouvinte do projeto de pesquisa. Muito obrigado Ângelo por receber-me e apresentar-me a escola, você foi muito gentil! Espero não ter lhe incomodado.

O porteiro, também sorrindo, exclama ao cego Miga:
- Não, de modo algum você não me incomodou. Foi um prazer conhecê-lo Miguel! Eu que agradeço, aprendi muito com você, será sempre bem-vindo nesta escola. Estarei lhe aguardando no sábado.

O cego, tateando com sua bengala-guia o caminho da calçada, sorri para o porteiro e lhe diz:
- Até sábado, vou indo pois tenho que descer até a Usina do Gasômetro, não quero perder o pôr do sol. Boa tarde Ângelo!

O porteiro, rindo, despede-se do cego Miguel:
- Ah sim! O pôr do sol! Já ia esquecendo que você desceu a rua para isso. Boa tarde Miguel!

Então, o cego Miguel, em passos lentos e seguros, seguiu tateando o caminho com sua bengala-guia, desce mais uma quadra da Rua Duque de Caxias. Em segurança atravessa a grande avenida de mão dupla em direção ao Gasômetro. Caminha até a margem do lago Guaíba, senta-se em uma pedra, e fica ali aguardando o sol descer do céu o que não demora muito à acontecer, e então sente surgir à sua frente o pôr do sol.
Era como Miguel havia dito: o sol descia com luzes de intensidades diferente, fazendo o céu mudar de cor; sentia as luzes rolarem como flashes com vários tons que piscavam, era somente isso que podia ver, mas era maravilhoso! Miguel sorria e suspirava de alegria.



CONCLUSÃO
Esse texto é uma narrativa em formato de metálogo, uma história com situações e personagens fictícios em um local real, a Escola Técnica Estadual Senador Ernesto Dornelles; localizada na Rua Duque de Caxias 385 no bairro Centro da cidade de Porto Alegre, que completou em junho de 2014 sessenta e oito anos de sua fundação. Foi umas das primeiras escolas técnicas femininas do país, tendo como sede um prédio construído em 1914 em estilo neoclássico.
Hoje a escola de ensino politécnico é frequentada por alunos de ambos os sexos. A imagem metafórica "Meus olhos não enxergam se eu não usar minha memória" aproxima dois temas: o olhar e a memória; que, descrevendo imagens especificas, pretende mostrar que, além do sentido da visão existe uma visão sensível encontrada na memória através do conhecimento específico das imagens.
Um estudo que apura as formas de enxergar, enfatizando o desenvolvimento da observação, partindo do conhecimento teórico para o sentido físico da visão. Refletindo no modo como se pensa, no que se pensa e no que se produz com o pensamento, para o desenvolvimento da expressão pessoal, social e cultural do aluno. Reflete também sobre temas como a inclusão social, no caso do metálogo, deficientes visuais e auditivos; e as novas formas de educação baseado na interdisciplinaridade, onde os conteúdos das disciplinas são desenvolvidos para comunicarem-se entre si.


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